terça-feira, 6 de novembro de 2012

Falsificação



A leitura do artigo 298 do Código Penal Brasileiro – Decreto-Lei Nº. 2.848, de sete de dezembro de 1940 –, desdobra diversas variáveis que merecem uma análise detida e pontual. O texto jurídico em comento tipifica a conduta de quem falsifica qualquer documento particular, ou seja, prevê ser um ilícito-típico falsificar, no todo ou em parte, documento particular ou alterar documento particular verdadeiro, cominando pena de reclusão de um a cinco anos ao agente infrator, além de uma multa.
A tradição imbricada no Direito Penal não fez da falsidade em documento particular um crime de estrutura jurídica diversa da que foi adotada na falsificação de documento público, ou seja, seria o objeto da tutela jurídica a fé pública, no mesmo sentido que ainda figurava no Código Imperial, constituindo-se a diferença entre os dois delitos de forma quantitativa ou de grau. Primeiramente, cabe compreender o significado de documento particular, conceito em geral “(...) formulado negativamente: são particulares os documentos que não reúnem as condições de documentos públicos.” Sendo assim, os documentos que não reúnem uma forma em especial, são firmados e fabricados por particulares, e sem a intervenção de um oficial público.
Como em todo crime de falsidade documental, é indispensável que a falsificação seja idônea ‘em si mesma’ para iludir a indeterminado número de pessoas. A falsificação grosseira e reconhecível imediatamente por qualquer pessoa inexperta, não constitui crime, pois não há perigo à fé pública.
Logo, o objeto material é o documento particular, assim considerado como tal e não compreendido como público (tão pouco equiparado como público para fins penais, art. 297, §2º do Código Penal), sendo que o próprio documento público nulo, por falta de formalidade legal, pode ser considerado como documento particular


A primeira situação que surge é sobre a relevância jurídica desprendida ao documento, ou, em outras palavras, quais espécies de documento possuem tal importância na vida social que merecem ser resguardados por uma tutela penal. Ou ainda, deverá o documento em análise possuir uma valoração suficiente para alcançar o objeto da tutela jurídica: a fé pública. Ora, por tratar-se o documento o objeto do crime, a ele é essencial que haja relevância jurídica em seu conteúdo, bem como seja escrito, legível, não ser anônimo e seu conteúdo deve expressar manifestação de vontade ou exposição de fatos. Relevante assinalar que os documentos em geral fixam, há séculos e séculos, os registros humanos dos mais variados, desde o assento de seu nascimento até a anotação de sua morte, vivendo, os humanos, ligados a papéis escritos de toda a espécie, de maior ou menor importância.
A essa crença universal é que se convencionou chamar, no campo do Direito, a fé pública dos documentos, expressão em dúplice sentido, para significar, sob o prisma objetivo, a aura de legitimidade que envolve os documentos, e, debaixo do ponto de vista subjetivo, a confiança apriorística da coletividade na sua veracidade.
 Impõe-se, desta maneira, o exame de corpo de delito, não sendo admitido o indireto, pois o crime deixa vestígio, sendo indispensável a apresentação do documento falsificado. Outrossim, por se tratar de crime formal, diz-se que o crime consuma-se com a falsificação e a alteração do documento, independentemente do uso efetivo, podendo ser admitida a forma tentada, contudo, sendo indispensável para fins de punição, a existência de prejuízo alheio, atual ou potencial, de qualquer natureza. Da mesma sorte:
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Não há falso punível sem a potencialidade do prejuízo para outrem. Desde os praxistas, como já vimos, foi fixado o princípio segundo o qual falsistas non punitur quae non solum non nocuit, sed nec erat apta nocere. Declara-se assim, a imputabilidade do falso inócuo e sem conseqüências
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Ora, uma vez que se exige uma potencialidade de prejuízo, ou a possibilidade de ocorrência de dano ao bem jurídico, deve o documento falsificado passar uma imagem para os terceiros de como fosse não-falsificado. Neste sentido, a adulteração ou a falsificação não podem ser facilmente perceptíveis, o documento precisa transmitir veracidade, pois neste âmago reside a necessidade da previsão legal penal, da possibilidade da falsificação do documento trair uma confiança por ter a sociedade como verdadeiro o documento falsificado, daí sobrevém a tutela jurídica. Assim, sendo a falsificação grosseira, de fácil percepção sua inconsistência, não alcançando o falsário o objeto de crença (em ter como verdadeiro ou legítimo) no documento, igualmente não pode ser considerado um agir típico.


Cabe ressaltar que a lei penal conforme está escrita, pode apresentar maiores dificuldades de interpretação. Em qual momento poder-se-á afirmar que houve o preenchimento do tipo penal. Eis que, sobre a condição de existência do dano ao objeto jurídico protegido, assim como, ao perigo de dano sobre tal bem jurídico, os elementos do crime de falsificação de documento particular, por somente fazer menção ao ato de falsificar o documento, devem ter uma análise subjetiva e de contexto. De forma a buscar uma leitura a incitar a discussão, Mutatis Mutandis, cabível a colocação de D’Ávila quando, reportando-se a probabilidade de dano do bem jurídico encontra como critério extremo a “possibilidade”, sendo “o limite objetivo da noção de perigo não poder ser outro, senão a possibilidade de dano ao bem jurídico”. De forma a ilustrar o mencionado, extraí-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:


A falsificação recepcionada pelo artigo 298 do Código Penal refere-se a falsificação material, ou seja, quanto a forma do documento. O documento pode apresentar dois tipos de falsidade, num caso recai sobre a exterioridade (material) e, no outro, sobre o sentido das declarações que o documento devia conter (ideológico)


A distinção entre falsificação material e ideológica reporta-se à capitulação do ilícito, isto é, se a falsidade é documental, estar-se-á frente ao artigo 298, no entanto, se for ideológica, o ilícito típico é regido pelo artigo 299 (falsidade ideológica), ambos do Código Penal. A falsificação material, afirma-se, pode ser sobre a alteração de documento verdadeiro, a qual incide sobre a “integridade física do papel escrito, procurando deturpar suas características originais através de emendas ou rasuras, que substituem ou acrescem no texto letras ou algarismos”; ou falsificação, em um sentido puro, na qual consiste “na criação, pelo agente, do documento falso quer pela imitação de um original legítimo, quer pelo livre exercício da imaginação do falsário.” O artigo 298 prevê em sua primeira parte a falsificação (falsificar, no todo ou em parte, documento particular), no qual o documento nasce fruto do trabalho do agente; e, na parte final, a alteração (alterar documento particular verdadeiro), no qual o documento preexiste à ação do agente e se constitui documento verdadeiro, sendo objetivo do agente emprestar-lhe aspecto ou sentido diverso ao original.
O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, não existindo requisitos para tanto e, por sua vez, o sujeito passivo é o Estado, uma vez que é a fé pública o bem jurídico ofendido e tutelado pelo dito artigo em análise, e, secundariamente a pessoa que fora prejudicada pela falsidade. No mesmo liame, na análise do tipo subjetivo, o delito de falsificação de documento particular é doloso, onde o agente impõe sua vontade de forma livre e consciente em praticar a falsificação ou alteração, pois deve o agente ter vontade livremente dirigida à prática da falsificação ou alteração documental, tendo o agente consciência de criar perigo de dano aos interesses jurídicos de alguém, tratado na escola tradicional como dolo genérico, não recepcionando o tipo a forma culposa.
São fatores universalmente reconhecidos pela doutrina, sem discrepância de monta, como essenciais à caracterização do crimen de falsi, e que assim se definem: a) alteração da verdade sobre o fato juridicamente relevante; b) imitação da verdade; c) potencialidade de dano; d) dolo.
Ainda, sobre a punição, vencido o caso de falsificação do documento, existe a situação de ‘uso’ do documento falsificado. Assim, dois posicionamentos surgem, sendo o uso deste documento por terceiro, ou seja, por agente que não aquele quem produziu a falsificação, o crime é de uso.[23] Sendo que, no caso do uso do documento se der pelo próprio falsário, tal situação (usar o documento falso) constitui post-factum impunível. Logo, mesmo que a idéia, comum senso, seja de imputar o agente em dois tipos penais (298 e 304 do Código Penal) existe, isto sim, a existência de um único crime punível: o de falsidade, isto, pois, o fato anterior de falsificar absorve o fato posterior de usar o documento falso, por não ostentar nova ofensa punível ao mesmo bem jurídico (non bis in idem). Neste sentido vem se manifestando os julgados:


Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/21105/consideracoes-pontuais-sobre-o-crime-de-falsificacao-de-documento-particular#ixzz2BSE2pheq


Outros dois julgados analisando a matéria sobre o delito posterior de uso não ser punível quando o agente infrator é o mesmo quem falsificou o documento. Ainda, nos julgados a seguir colacionados, apreciação sobre o juízo competente, firmando entendimento que a distinção entre justiça estadual ou federal se observa pelas condições do crime antecedente de falsificação, e não pela forma de uso do documento:

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O uso dos papéis falsificados, quando praticado pelo próprio autor da falsificação, configura post factum não punível, mero exaurimento do crimen falsi, respondendo o falsário, em tal hipótese, pelo delito de falsificação de documento público (CP, art. 297) ou, conforme o caso, pelo crime de falsificação de documento particular (CP, art. 298). Doutrina. Precedentes (STF). Reconhecimento, na espécie, da competência do Poder Judiciário local, eis que inocorrente, quanto ao delito de falsificação documental, qualquer das situações a que se refere o inciso IV do art. 109 da Constituição da República. Irrelevância de o documento falsificado haver sido ulteriormente utilizado, pelo próprio autor da falsificação, perante repartição pública federal, pois, tratando-se de post factum impunível, não há como afirmar-se caracterizada a competência penal da Justiça Federal, eis que inexistente, em tal hipótese, fato delituoso a reprimir." (HC 84.533, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-9-2004, Segunda Turma, DJ de 30-6-2009.).
Falsificação de documento público – certidão negativa de débito do Instituto Nacional do Seguro Social – e uso do mesmo junto a banco privado para renovação de financiamento. Falsificação que, por si só, configura infração penal praticada contra interesse da união. Competência da Justiça Federal. A jurisprudência desta Corte, para fixar a competência em casos semelhantes, analisa a questão sob a perspectiva do sujeito passivo do delito. Sendo o sujeito passivo o particular, conseqüentemente a competência será da Justiça Estadual. Entretanto, o particular só é vítima do crime de uso, mas não do crime de falsificação. De fato, o crime de falsum atinge a presunção de veracidade dos atos da Administração, sua fé pública e sua credibilidade. Deste modo, a falsificação de documento público praticada no caso atinge interesse da União, o que conduz à aplicação do art. 109, IV, da Constituição da República." (HC 85.773, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 17-10-2006, Segunda Turma, DJ de 27-4-2007). No mesmo sentido: RE 446.938, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-5-2009, Primeira Turma, DJE de 19- 6-2009; RE 560.944, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 26-8-2008, Segunda Turma, DJE de 19-9-2008.
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O último ponto a ser empreendida uma breve consideração se dá com a complexidade da internet e com os avanços tecnológicos, merecendo o meio virtual uma atenção maior, principalmente frente ao art. 298 do Código Penal. Ora, será cabível uma interpretação extensiva ao entendimento do elemento do tipo ‘documento’ às falsificações em ambientes virtuais? Existem teses que compreendem o documento digital como outra forma a espécie papel.
Portanto, buscou-se anotar sobre a falsificação de documentos particulares, apresentando algumas situações jurídicas pontuais envolvendo a matéria. Cabe ressaltar que a falsificação de documentos é matéria constante nas Cortes brasileiras, estando, em grande maioria de casos, vinculada a outros fatos delituosos, merecendo apreço o art. 304 Código Penal, o qual, quando citado, não recepciona o concurso material por absorver o crime primeiro. Outro fator de grande importância é sobre a relevância do documento falsificado e a proteção do bem jurídico. Por certo que a interpretação da matéria não pode ser tão simples quanto ao usualmente praticado nos casos reais.

Notas:

[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte especial – arts. 213 a 359. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p. 349.
[2] O Código Imperial de 1830 não distinguia a falsidade de documento público da falsidade em documento particular. O referido crime estava assim descrito no art. 167 do decreto 16/1980 que executava o Código Criminal: “CAPITULO II FALSIDADE - Art. 167 - Fabricar qualquer escriptura, papel, ou assignatura falsa, em que não tiver convindo a pessoa, a quem se attribuir, ou de que ella ficar em plena ignorância; Fazer em uma escriptura, ou papel verdadeiro, alguma alteração, da qual resulte a do seu sentido; Supprimir qualquer escriptura ou papel verdadeiro; Usar de escriptura, ou papel falso, ou falsificado, como se fosse verdadeiro, sabendo que o não é; Concorrer para a falsidade, ou como testemunha, ou por outro qualquer modo. Penas - de prisão com trabalho por dous mezes a quatro annos, e de multa de cinco a vinte por cento do damno causado, ou que se poderia causar.”


Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/21105/consideracoes-pontuais-sobre-o-crime-de-falsificacao-de-documento-particular#ixzz2BSEb7NVv






Texto retirado do site: http://jus.com.br/revista/texto/21105/consideracoes-pontuais-sobre-o-crime-de-falsificacao-de-documento-particular















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