terça-feira, 6 de novembro de 2012

Evolução do direito contratual


Sumário: 1. Introdução; 2. O contrato nos moldes liberais; 3. O intervencionismo estatal nos contratos; 4. O novo modelo contratual; 5. Considerações finais; referências bibliográficas.

1. Introdução
O contrato é instrumento jurídico indispensável a incontáveis relações humanas, especialmente na esfera econômica. O princípio da autonomia da vontade, apanágio da doutrina do liberalismo, por muito tempo vige no Direito Contratual. Entretanto, a sociedade percebe que não basta a igualdade formal, pois os indivíduos encontram-se em condições materialmente desiguais. Assim, a autonomia da vontade perde seu reinado a fim de atender-se à necessidade de ser promovida a igualdade material. Com isso, o referido princípio continua presente, mas subordinado ao princípio da função social dos contratos, que deve ser observado. Sob essa nova ótica apresenta-se o Direito Contratual hodierno, visando à proteção dos hipossuficientes face ao tremendo poder econômico de determinadas pessoas, sejam físicas, sejam jurídicas.

Este artigo aborda tal assunto, aludindo aos Códigos Civis Brasileiros de 1916 e 2002, norteados, respectivamente, pela autonomia da vontade e pela função social dos contratos.

2. O contrato nos moldes liberais
Ao propugnar o individualismo como elemento a predominar nas relações sociais, o liberalismo eleva o princípio da autonomia da vontade ao patamar de diretriz para os atos da vida civil e proclama a necessidade da não intervenção estatal nas relações de cunho econômico, haja vista o pressuposto do liberalismo de que as leis naturais do mercado se encarregam da promoção do equilíbrio econômico e, por conseqüência, da harmonia social. É a conhecida doutrina do laissez faire.

Surgem os códigos civis da França e da Alemanha, os quais passam à categoria de paradigma ao encarnarem o princípio da autonomia da vontade como o cerne da legislação civil.

Fruto dos ideais da Revolução de 1789, o famigerado Código de Napoleão caracteriza o contrato como o mecanismo necessário à aquisição da propriedade. O direito à propriedade é tido como um dos direitos por excelência, e em torno dele fazem-se presentes os institutos civis, dentre estes o contrato. A esse respeito, um dos apanágios é a liberdade dos indivíduos em contratar livremente com vistas à fruição dos diversos bens jurídicos dos quais a grande maioria da população esteve privada durante séculos. A propriedade, enfim, é considerada a expressão mais concreta da liberdade, atuando o contrato como o mecanismo legal para a transmissão da propriedade.

O código civil alemão também se reveste das premissas do liberalismo político-econômico. Sua contribuição marcante é o instituto do negócio jurídico, que engloba o contrato, enriquecendo sobremaneira o Direito e influenciando significativamente a elaboração do Código Civil Brasileiro de 1916, que prima pelo formalismo no sentido de considerar válidos os contratos que observam os preceitos legais, vistos estes como a condição sine qua non àquela validade, preceitos tais que não levam em conta a igualdade material, porém tão somente a igualdade formal.

No liberalismo, o primado é da vontade, que, a seu turno, constitui o cerne do instituto “negócio jurídico”. A respeito da importância desse elemento para a validade dos atos e negócios jurídicos, duas posições doutrinárias são destacadas:

“Teoria da Vontade, Teoria da Vontade Real ou Teoria Voluntarista – defendida, dentre outros, por Savigny e Windscheid, considera a intenção como o fulcro da vontade expressa e o elemento responsável pelos efeitos jurídicos que do negócio provêm. Em caso de falta de concordância entre o que foi intentado e o que efetivamente se declarou, prevalece a intenção sobre a declaração, porque na intenção se encontra a força jurígena do ato jurídico estritamente considerado. (COSTA, 2002: 224)

Teoria da Declaração da Vontade – sendo Von Bulow um de seus grandes autores, essa corrente dá relevância à declaração feita, [...] com vistas à estabilidade das relações jurídicas [...]. A essência do negócio jurídico é constituída pela declaração da vontade e não pela vontade em si mesma, e por isso prepondera a vontade declarada. [...]” (COSTA, 2002: 226)

A autonomia da vontade e a liberdade contratual formam, portanto, a viga mestra do Direito Contratual nos moldes do liberalismo, tendo em vista a “igualdade” de todos perante a lei. Assim se reveste o Código Civil Brasileiro de 1916.

3. O intervencionismo estatal nos contratos
As transformações incessantes que se operam na sociedade, sob os mais variados aspectos, especialmente econômico e social, reclamam mudanças jurídicas, exigindo do legislador uma alteração no Direito, atendendo assim aos reclamos atuais originados das novas configurações no seio social.

Constata-se, no que pertine aos contratos, que o equilíbrio entre as partes não é assegurada pela igualdade, aqui entendida como igualdade formal. Se o cotidiano evidencia que os indivíduos são materialmente desiguais, possibilitando que os interesses de alguns, em razão da força político-econômica que representam, sobrepujam-se aos interesses dos denominados hipossuficientes, nada mais justo que uma revisão da filosofia jurídica dos contratos. A sociedade clama pela igualdade material, tendo como objetivo afastar o abuso de direito presente em inúmeras relações sociais e consubstanciado geralmente em certas cláusulas contratuais (as chamadas cláusulas abusivas).

Com isso, o Estado vê-se na contingência de intervir nos contratos através de uma nova legislação, visando à manutenção do real equilíbrio econômico entre as partes contratantes para a segurança da coletividade através do combate ao abuso do poder dos economicamente fortes.

Surge o princípio da função social dos contratos. Proclama-se o dirigismo contratual, também conhecido como dirigismo econômico. Afinal, conforme exposto por Zamora:

“La nueva filosofía del MERCADO LIBRE, donde cada ente se defiende con sus propias uñas, creando y ganando según su esfuerzo personal, llevaría, necesariamente, a una LEY DE LA SELVA, donde los más poderosos digieren a los más pequeños, no habiendo en el hecho, “igualdad” alguna como la planteada en los presupuestos de esta economía.”

O princípio da autonomia da vontade perde o seu reinado absoluto, pois passa a sofrer limitações por parte do Estado. Percebe-se isso até mesmo na teoria da declaração da vontade (objeto de comentário no item precedente deste artigo) e na cláusula rebus sic stantibus. Outro exemplo dessas limitações está no Código de Defesa do Consumidor, que se reveste de importância capital no ordenamento jurídico brasileiro ao trazer para este cenário uma nova filosofia contratual: a proteção do hipossuficiente, ensejando o alcance da igualdade material das partes contratantes.

4. O novo modelo contratual
O novo Código Civil Brasileiro estabelece, no Art. 421: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Essa é a nova configuração dos contratos no ordenamento jurídico pátrio.

O legislador não definiu a função social do contrato. É possível apreendê-la no sentido de o contrato não ser um mero instrumento para a circulação de bens, produtos e serviços, mas um instrumento que observe a desigualdade material que pode haver entre as partes, de sorte a proteger o lado vulnerável dessa relação e, com isso, assegurar, ao menos em tese, a paridade jurídica dos sujeitos contratantes. Probidade, boa-fé, moralidade contratual e eqüidade são elementos formadores da definição de que ora se trata.

Sobre a boa-fé, Lahr (1996: 190) expõe seu entendimento:

“A palavra boa-fé denota a confiança, a segurança e a honra nela baseadas; a ela se refere todo o cumprimento da palavra dada; especialmente a palavra fé, fidelidade, quer dizer que uma das partes se entregará confiadamente à conduta leal da outra parte, em cumprimento de suas obrigações, acreditando em que esta não a enganará.”

Por sua vez, Marques ([2001]: 107) assim se expressa:

“Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes.”

E Pedro Alvim apud Santos (2000: 17) diz que a boa-fé “ ‘corresponde a um estado de espírito em harmonia com a manifestação de vontade que vinculou as partes contratantes; é a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte ao engano ou erro’.”

A grande expansão das atividades empresariais e do mercado de consumo leva ao uso dos contratos de adesão, adotados devido à economia que acarretam em termos de custo financeiro em sua formação e também graças ao atendimento eficiente e eficaz à demanda de celeridade na consecução de negócios. Tais contratos trazem cláusulas predispostas pela empresa, requerendo o simples aceite das mesmas pelo contratante, denominado aderente, que é o consumidor final, que, a propósito, muitas vezes é compelido a essa adesão por falta de mais opções no mercado, por inexistência de opção (no caso de monopólio) ou por se tratar de um bem, produto ou serviço essencial que é contratado, por exemplo, num momento de grande desvantagem para o consumidor. O aderente tem a sua liberdade contratual deveras restringida, desequilibrando a relação.

Outro exemplo ilustrativo da necessidade imperiosa de o contrato atender à sua função social, justificando esse novo modelo contratual ínsito no Código Civil de 2002, é o referente aos contratos realizados via internet (contratos eletrônicos). Inimagináveis são os desdobramentos mercadológicos advindos dessa fantástica ferramenta de marketing que é a internet, ensejando também diversas ocasiões em que o consumidor pode ser lesado em sua condição de hipossuficiente.

Portanto, o princípio da função social do contrato, enquanto reformulador da teoria geral dos contratos, propicia o interesse social, não em detrimento do interesse privado, contudo como fator que os particulares não devem perder de vista em suas relações, porque não mais se admite nem mesmo a dominação velada dos fortes sobre os fracos. Esse princípio, pode-se asseverar, parecer aurir os seus fundamentos filosóficos no pensamento rousseauniano acerca da igualdade, quando o grande autor registra: “quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e não haja nenhum tão pobre que se veja constrangido a vender-se” (ROUSSEAU, 1997: 127). Enquanto tal sonho não se concretiza, nada mais razoável que buscar atingir a igualdade material, pois o mero formalismo não garante a real igualdade, ainda que somente por ocasião de os contratos se firmarem.

De conformidade à Carta Magna de 1988, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (Art. 1º, III); a construção de uma sociedade livre, justa e solidária é um dos objetivos fundamentais dessa República (Art. 3º, I); a finalidade da ordem econômica é assegurar uma existência digna a todos os indivíduos. Têm-se aí os fundamentos constitucionais do princípio da função social do contrato, que prima pela busca do alcance efetivo do bem comum e guarda relação com a dignidade humana ao se reconhecer que esta implica o comportamento de “nunca usar o outro como instrumento, respeitar em qualquer caso e sempre a sua inviolabilidade, considerar sempre cada pessoa como realidade indisponível e intangível” (MARTINI, 2002: 6).

Assim, o Código Civil de 2002 proclama o novo modelo contratual, pois, “ ‘entre o forte e o fraco, é a liberdade que escraviza e a lei que liberta’ ” (Adalberto Pasqualotto apud SANTOS, 2000: 27).

6. Considerações finais
O princípio da função social do contrato reveste-se de legitimidade, uma vez que vem ao encontro das aspirações da sociedade brasileira atual, dando nova configuração à regência jurídica dos contratos. A absolutização do velho princípio da autonomia da vontade não mais atende plenamente às demandas dessa mesma sociedade, e por isso o legislador, pautado na riqueza do mundo fático e das doutrinas jurídicas, insere no Código Civil de 2002, Art. 421, o princípio da função social do contrato enquanto diretriz para o Direito Contratual. Autonomia da vontade e função social do contrato vigem, preponderando, no entanto, o segundo princípio, face à busca da necessária igualdade material nas relações jurídicas como exigência democrática.

A imperiosa necessidade da ética esquadrinha todos os recantos da existência humana, notadamente no âmbito das relações contratuais. Daí falar-se em probidade, boa-fé, moralidade, eqüidade e elementos outros que consubstanciam um comportamento ético, haja vista o inafastável dever universal de respeitar a dignidade humana, direito natural inalienável de todo indivíduo. É nessa perspectiva que se apresenta o princípio da função social do contrato.


Referências bibliográficas:
BRASIL. Código Civil – 2002.
_______. Constituição da República Federativa do Brasil – 1988.
COSTA, Wellington Soares da. A vontade nos atos jurídicos. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí: UNIVALI, ano 7, n. 14, p. 219-233, abr. 2002.
LARH, Helena. Interpretação e qualificação dos negócios jurídicos. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, ano 85, v. 723, p. 173-193, jan. 1996.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3. ed. [São Paulo]: Revista dos Tribunais, [2001].
MARTINI, Carlo Maria. Onde o leigo encontra a luz do bem? Reflexão: diálogo sobre a ética. São Paulo: Instituto Ethos, ano 3, n. 6, p. 4-7, fev. 2002. Disponível em: <http://www.ethos.org.br/docs/conceitos_praticas/publicacoes/reflexao/index.shtml>. Acesso em: 12 ago. 2002.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução por Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção “Os Pensadores”).
SANTOS, Veronildes Moreira. Os contratos bancários e o código de defesa do consumidor. 2000. [?] f. Monografia (Especialização em Novos Direitos e Direitos Emergentes) – Universidade Federal de Santa Catarina em convênio com a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista (BA). 2000.
ZAMORA, Claudio Venegas. Las acciones colectivas y difusas como herramientas de participación de los consumidores en una sociedad democrática. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande: Âmbito Jurídico, ano I, n. 0, fev. 2000. Disponível em: <www.ambito-juridico.com.br/aj/dconsu0002.html>. Acesso em: 25 ago. 2003.

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