CURSO DE EPISTEMOLOGIA JURÍDICA
A NORMA JURÍDICA
(reflexões em torno da teoria das fontes, da teoria da norma jurídica e da teoria do ordenamento jurídico)
Toda e qualquer norma jurídica emerge das fontes do direito, pelo que, não se pode definir o que seja Norma Jurídica sem delimitar o que sejam estas Fontes do Direito. Se é da essência do direito ser normatividade, não há como negar que o direito se manifesta, através de suas fontes, enquanto norma jurídica. Deste modo, é necessário demarcar as fontes do direito donde emergem as diversas normas jurídicas. Não se trata de uma questão simples.
Segundo a doutrina tradicional, as fontes do direito classificam-se em formais e materiais. Fontes do jurista, nesta perspectiva, seriam apenas as fontes formais, nas quais as decisões judiciais encontram fundamento: a lei, a jurisprudência, a doutrina e o costume, basicamente. As demais, chamadas fontes materiais, constituídas por valorações ético-sociais, hábitos e costumes em gestação, novas demandas de regulamentação em decorrência de avanços tecnológicos, etc., são apenas fontes para o jurista num sentido mediato, eis dizem respeito ao conteúdo das normas, e constituem a matéria prima utilizada para a elaboração da lei: delas se ocupa imediatamente o legislador, já que nos sistemas de direito legislado a lei é a fonte principal.
Adotando-se tal concepção de fontes, tende-se ao chamado formalismo jurídico, um modelo de teoria jurídica onde a forma determina o que é e o que não é direito (v.g., qualquer conteúdo legislado é direito porque está sob a forma legal). O jurista somente pode fazer valer o direito que está sob a forma legal, doutrinária, jurisprudencial ou consuetudinária. Tal formalismo facilita a organização do direito enquanto sistema de regras, exatamente por delimitar, com algum rigor, as fontes donde tais regras emergem, embora se afaste um pouco a realidade, ou seja, não permite uma compreensão mais consistente das práticas judiciais concretas e cotidianas dos foruns da vida, onde o jurista se vale, inelutavelmente, de valorações ético-sociais e outros elementos normativos que não emergem das clássicas fontes do direito para construir suas decisões judiciais. Mais do que isto, a redução do fenômeno jurídico a um critério formal opera um recorte arbitrário do objeto de análise, podando importantes dimensões do fenômeno, tal como a inafastável dimensão axiológica, onde se discute entre outras coisas uma Teoria da Justiça, a idéia de Pluralismo Jurídico, típica de sociedades abertamente pluralistas, etc. Esta questão, complexa por natureza, será objeto de análise no momento adequado.
Se direito é aquilo que emerge enquanto norma de determinada fonte, ou seja, posto sob uma determinada forma, qual a forma fundamental da norma jurídica em nosso sistema? É a forma legal, já que o nosso sistema é um sistema de direito legislado. A lei é a principal fonte do direito. Uns dizem que, além da Lei, têm-se a doutrina, a jurisprudência e os costumes. Outros, recorrendo à LICC, dizem que são fontes do direito a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Esta última classificação incorre em obtusa imprecisão metodológica. Em primeiro lugar analogia não é fonte; é técnica de aplicação do direito, mais especificamente de colmatação de lacunas. Já os Princípios Gerais do Direito, ora se manifestam através da lei (princípio da reserva legal, p. exemplo), ora se manifestam através da doutrina, pelo que, em si, não constituem fonte isoladamente. Ademais, em que sentido os princípios gerais do direito compõe a ordem jurídica positiva? O que são tais princípios? Como se aplicam? São questões não menos complexa, que também irão requerer um estudo específico.
Portanto, seguindo uma concepção tradicional de fontes do direito estatal, poderíamos sugerir sua classificação em 1) fonte principal (a lei), e 2) fontes complementares (a jurisprudência, a doutrina e os costumes). Desse modo, é possível afirmar que as normas jurídicas vigentes (o direito positivo estatal) emergem, ao menos em seu núcleo de significação normativa, da lei, da jurisprudência, da doutrina e dos costumes. Mas o que é a norma que emerge destas fontes? Que norma é essa que emerge da doutrina, por exemplo? Toda doutrina é norma? Emerge uma norma de cada uma dessas fontes, por vez? Pode uma norma emergir de mais de uma fonte ao mesmo tempo? Bem observado, impossível refletir isoladamente o que sejam “fontes do direito”, sem que se determine o que sejam as normas jurídicas que delas emergem na condição de direito positivo, ou direito vigente. Em síntese, não se compreende o que seja fonte do direito sem determinar o que seja norma jurídica, do mesmo modo que não se compreende o que é norma jurídica sem a definição do que seja fonte do direito.
Ora, aqui se apresenta, por inteiro, a nossa perspectiva: o pensamento positivista em gera parte de um conceito de fontes do direito construído na dependência da idéia de norma jurídica. No entanto, não define o que seja norma jurídica. Salta aos olhos, o conceito de fonte apresentado carece de uma definição de norma jurídica. Trata-se de algo mais complexo, como veremos - e porque não dizer, determinante da própria concepção de fontes do direito. Em outras palavras, se fonte do direito é aquilo do qual emanam normas jurídicas, é indispensável definirmos o que seja norma jurídica para chegarmos a uma definição de fonte. Indiscutível, o conceito daquela é um pressuposto desta.
Por este exato viés é possível criticar Bobbio quando ele afirma que a “importância do problema das fontes do direito está no fato de que dele depende o estabelecimento da pertinência das normas, com que lidamos a um determinado ordenamento jurídico” (N. Bobbio, O Positivismo Jurídico, p. ). Ora, a perspectiva correta seria exatamente a inversa: sendo norma jurídica aquilo que emana das fontes do direito e se organiza enquanto um ordenamento jurídico, a importância do tema norma jurídica é fundamental, por ser pressuposto, para traçarmos o que seja fonte do direito e, por outro ângulo, ordenamento jurídico. Aliás, mais do que a idéia de que só é possível definirmos o que seja fonte e ordenamento jurídicos partindo de uma definição de norma jurídica, é necessário reconhecermos que tais matérias são intrínsecas a própria concepção de norma. A separação metodológica destes temas é vício que promove graves distorções no pensamento jurídico positivista, eis que são estudos necessariamente interdependentes.
Destarte, de nada adianta elaboramos uma taxinomia dos ordenamentos jurídicos segundo o critério da pluralidade e da hierarquia das fontes do direito, se não definirmos o que seja norma jurídica, eis que uma tal classificação, como a apresentada pelo autor, implica numa necessária pluralidade de espécies de normas jurídicas, e numa consequente hierarquia entre elas. Ora, tal perspectiva, por sua vez, pressupõe, mais uma vez, sem podermos evitar a repetição, uma concepção de norma jurídica. Vejamos um exemplo de rara simplicidade: se considerarmos como duas fontes distintas do direito a lei e a jurisprudência, como de fato o são, e se considerarmos ainda que fonte é aquilo da qual emana norma, tenderemos a pensar na existência de “normas legais” e “normas jurisprudenciais”, ou seja, em normas distintas e portanto, carentes de uma disposição hierárquica. A experiência jurídica, entretanto, mostra-nos que a jurisprudência, enquanto fonte do direito, é via de regra utilizada concomitantemente com a lei, para fixar certos conteúdos vagos da lei, conjugando-se ambas as fontes para a definição de “uma” norma jurídica apenas. Vide, por exemplo, a concreção dos tipos penais, quando contêm conceitos normativos e conceitos indeterminados (“mulher honesta”, “pequeno valor”, “meio cruel”, etc.). Em outras palavras, nos sistemas de direito legislado, o jurista utiliza-se da lei, em primeiro lugar. Entretanto, para enfrentar a reconhecida e inafastável plurivocidade da lei, recorre às definições extralegais de origem jurisprudencial e doutrinária, tudo para encontrar uma única definição normativa - uma única norma jurídica - para um único fato jurídico. O jurista, deste modo, recorre a mais de uma fonte para elaborar uma norma jurídica, que é um fenômeno complexo. Quebra-se, portanto, a relação “uma fonte utilizada - uma norma”. A norma jurídica pode ser produto da correlação entre diversas fontes do direito. Desloca-se, por decorrência, toda a perspectiva da hierarquia entre as fontes, eis que a idéia mais correta seria a de integração entre as fontes - embora, por óbvio, não no sentido clássico de “colmatação de lacuna”.
A postura positivista, de um modo geral, por não enfrentar com a devida maturidade a complexidade do conceito de norma, não explicita o verdadeiro papel da teoria das fontes do direito em sua própria concepção do jurídico. Aliás, nada de novo se nos apresenta quando navega sob o espectro da conhecida subdivisão das fontes do direito em delegantes e delegadas. Trata-se de perspectiva teórica desenvolvida pelo pensamento jurídico positivista para fundamentar a soberania hierárquica absoluta da lei sobre as demais fontes nos sistemas de direito legislado. Aliás, historicamente fundamental para a consolidação do Moderno Estado de Direito - em especial para a massificação da crença do ideal de liberdade sob o manto da lei e, principalmente, sob o mito da neutralidade estatal - a suposta garantia dos cidadãos igualados pelo direito de voto. Entretanto, tais mitos são ora desconectados com a prática judicial, ota epistemicamente insustentáveis, tal como o é o mito da hierarquia das fontes do direito e o da completude e coerência lógica do ordenamento, ou mesmo o mito do silogismo judiciário. Bem observando a construção das decisões judiciais, não se trata propriamente de uma questão de hierarquia da lei em relação às demais fontes, mas sim de fundamentação das decisões para que alcancem a necessária juridicidade. Destarte, seria mais adequado enfrentar a classificação das fontes normativas em vinculantes e persuasivas do que, como faz o positivismo, ao subdividir as fontes em delegantes e delegadas. Note-se, por ser a lei vinculante, a coerência do ordenamento jurídico-legal, embora impossível do ponto de vista absoluto, deve ser perseguida a qualquer custo. Já a coerência entre as diversas normas jurisprudenciais é irrelevante, pois trata-se de fonte normativa de natureza persuasiva para o aplicador do direito. Portanto, é absolutamente normal a convivência de conteúdos normativos jurisprudenciais conflitantes.
Os juristas, carentes de uma concepção madura de norma jurídica e alienados nesta perspectiva histórica e política da classificação das fontes, tendem a repetir tal idéia de hegemonia da lei em suas modernas teorias, hierarquizando as diversas fontes do direito, sem prestarem atenção no fenômeno mais óbvio no dia a dia do direito, qual seja, o da construção das decisões judiciais. O equívoco, ao nosso ver, reside justo na ausência de uma concepção de norma jurídica capaz de dar conta do fenômeno mais importante para o jurista: a concreta da aplicação do direito, ou seja, a concreção do direito.
A DIMENSÃO LEGAL DA NORMA JURÍDICA
É interessante observar que os jurista, em especial os que operam efetivamente o sistema jurídico estatal, aplicam este sistema de normas jurídicas sem dispor de uma idéia clara do que sejam tais normas. Em regra, quando buscam pensar uma idéia concreta da norma jurídica a primeira imagem que lhes ocorre é a lei - ou melhor ainda, um dispositivo legal, tal como o artigo 121 do Código Penal. Apesar da norma jurídica ser, nos sistemas de direito legislado, fundamentalmente a lei, por certo esta não exaure o direito vigente. Se assim o fosse, seria a única fonte reconhecida. O fato de existirem outras fontes do direito, por si, já indica a vigência, nesses sistemas, de normatividade que emerge de outras fontes que não a lei. Não obstante isso, ainda quando se considera a lei como fonte exclusiva da normatividade jurídica, nem assim é razoável identificar-se a norma legal com o dispositivo de lei, tendo em vista a precisão metodológica que o ato de aplicação do direito requer. Afinal, o que é norma jurídica dentro de uma lei? Por exemplo: uma lei com 34 artigos é composta por 34 normas jurídicas? O art. 4° do CCB é “uma” norma jurídica? O artigo 327 do Código Penal, que define o que é “funcionário público” para efeito de aplicação da lei criminal é uma norma jurídica? Onde a norma jurídica é devidamente delimitada e enunciada no processo judicial? A sentença é uma norma jurídica? Em que medida? Qual é a estrutura de uma norma jurídica? Qual a função que cumpre?
Ora, tais dúvidas nos remetem à imensa imprecisão metodológica que pauta a aplicação do direito vigente, resultante de uma deficiente compreensão e elaboração conceitual da norma jurídica. Por óbvio, a apreensão do direito exige, antes de mais nada, o domínio de conceitos jurídicos fundamentais, tais como este. Se pretendemos dominar o próprio ato de “aplicação” do direito, a primeira dificuldade metodológica sobre a qual devemos nos debruçar, sem dúvida, é justamente a definição do que seja a norma jurídica a ser “aplicada”. Não se trata de uma tarefa fácil, embora fundamental, do ponto de vista da qualidade da cidadania dos jurisdicionados, especialmente quando se tem em vista a delimitação do que seja efetivamente “direito vigente”, bem como dos limites possíveis de vinculação dos operadores a este direito, ou seja, da vinculação a uma ratio decidendi determinada na anterioridade das decisões judiciais. Fora daí, incorre-se nos perigos do irracionalismo jurídico. Por este viés, percebe-se desde já que uma discussão em torno do conceito de Norma Jurídica tem o condão de trazer a balha os principais temas da Metodologia Jurídica e, de um modo mais geral, da Teoria do Direito. Vejamos inicialmente o campo metodológico.
Tomemos duas idéias básicas para a compreensão do que seja a norma jurídica. A primeira, diz respeito à sua estrutura lógica. A segunda, trata-se de uma definição funcional, ou seja, que aponta a sua função.
A ESTRUTURA LÓGICA DA NORMA JURÍDICA (definição estrutural)
A norma jurídica possui, em sua estrutura lógica minimal, duas partes: Um suporte fático hipotético (SFH), que é uma descrição hipotética de um fato, e um preceito (P), que é a previsão abstrata de uma conseqüência jurídica. Estes dois elementos necessariamente tem que estar presentes, eis que compõem a estrutura minimal da norma jurídica. Logo, N=SFH+P.
Fala-se em estrutura minimal porque, quando a norma jurídica contém uma sanção, esta estrutura é dúplice. Aí, já não é apenas N=SFH+P. Numa norma dotada de sanção, têm-se a seguinte estrutura dúplice: dado um determinado fato (SFH) deve ser o preceito (P); entretanto, dado o descumprimento do preceito devido (não P), deve ser S (sanção). Diz-se dúplice esta estrutura por conter dois “dever ser”. Utilizando-se da linguagem adotada por Cóssio, a norma jurídica dotada de sanção é composta por uma endonorma e uma perinorma. Kelsen falava em uma norma primária e uma norma secundária. Senão, vejamos:
Ex1): 1 - Dada uma dívida, deve ser o pagamento (endonorma, ou norma primária).
2 - Dado o não pagamento, deve ser a sanção (perinorma, ou norma secundária).
Ex2): 1 - Dada uma vida humana, deve ser não matar (endonorma).
2 - Dado o matar (= não-não matar), deve ser sanção (perinorma).
Assim, a estrutura minimal fica: N=SFH+P (endonorma)
ñ P+S (perinorma)
Todas as normas que contêm sanção têm esta estrutura dúplice, embora uma parte da estrutura não apareça explicitamente no texto legal (ex: “matar alguém, pena de 6 a 20 anos”).
Para facilitar a exposição, vamos trabalhar com uma norma dotada de estrutura minimal (um dever ser apenas). Desse modo, para facilitar a exposição, mesmo quando utilizarmos como exemplo normas dotadas de sanção, iremos desconsiderar a parte implícita, tratando-a como se sua estrutura fosse minimal. Logo, para que algo seja uma norma jurídica completa, ainda que contenha uma sanção, há que ter, explicitamente ao menos, uma primeira parte (SFH), que é uma descrição hipotética de um fato, e uma segunda parte (P) que é a previsão de uma conseqüência jurídica.
Exemplo 1
Vejamos, portanto: Diz o artigo 4º do CC: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro". Isso é “uma” norma? Tem um suporte fático hipotético? Sim, o “nascimento com vida” é um fato hipotético, que pode vir a acontecer. Tem um preceito, ou seja, uma consequência jurídica conectada ao “nascimento com vida”? Sim, o “começo da personalidade civil”.
Aqui já estaríamos, conforme nossa definição estrutural, diante de uma norma jurídica. Mas, e o resto do texto? Tem outro suporte fático ali? Sim, a “existência de um nascituro, desde a concepção”. Tem outra consequência jurídica, ou seja, outro preceito? Sim, a conseqüência será a “proteção ao direito” do nascituro. Portanto, se é correta nossa definição estrutural de norma jurídica (N=SFH+P), estamos diante de duas normas em um único dispositivo de lei.
Exemplo 2
Diz o artigo 327, caput, do Código Penal: “Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública”. Trata-se de uma norma jurídica? É possível identificar no seu texto uma hipótese fática e uma consequência jurídica? Por óbvio, não é possível. Trata-se de uma mera definição de funcionário público para efeitos de aplicação da lei penal. Ora, desse modo, correta nossa definição estrutural de norma, o artigo 327 do Código Penal não constitui norma jurídica.
Esta definição estrutural de norma tem um condão inicial de afastar, definitivamente, um primeiro equívoco recorrente dos juristas: o conceito de norma jurídica não se identifica com o de dispositivo legal, de modo que, se uma lei é composta por 25 artigos, dela não se pode afirmar que tenha 25 normas. Ora, se já havíamos observado a necessidade de desfazer a falsa identidade entre “norma" e “lei", vê-se ainda que é preciso romper a falsa identidade entre “norma” e “dispositivo legal”, ou seja, “cada dispositivo, uma norma”.
O CONCEITO FUNCIONAL DE NORMA JURÍDICA
Passemos ao segundo conceito de norma jurídica, de natureza funcional, que irá contribuir para a correta compreensão do direito enquanto fenômeno normativo. Esta segunda “ferramenta” podemos deduzir, dentre outros, do princípio da reserva legal. Vejamos este exemplo: “Não haverá crime nem pena sem lei anterior que o defina" . Ora, sendo o “crime” um fato jurídico (ato ilícito penal), sendo a “pena” uma consequência jurídica do crime (correspondendo ao direito subjetivo de punir e ao dever de cumpri-la) e, sendo a “lei” a norma jurídico-penal, podemos enunciar este princípio com a seguinte formulação, mais genérica e abrangente: “não haverá fato jurídico, nem consequência jurídica, sem norma jurídica anterior que o defina”. Logo, o papel da norma é o de dar definição (jurídica) ao fato jurídico, para que dele se irradie a consequência jurídica.
Eis aí uma ferramenta preciosa: o papel da norma é dar uma definição jurídica aos fatos. Transformar os fatos em fatos jurídicos. Imprimir-lhes significação jurídica. Destarte, a norma de direito imprime significação jurídica aos fatos e faz com que deles se irradiem conseqüências jurídicas, que são direitos subjetivos e deveres, no sentido largo, e que situam-se, como vamos ver adiante, no plano da eficácia jurídica. Conseqüência jurídica é basicamente uma relação de vida regulada pelo direito objetivo (a norma jurídica), onde um titulariza o direito subjetivo, o outro titulariza o dever. Essa relação nós denominamos relação jurídica.
Vejamos sob esta perspectiva o problema da fontes normativas do direito, ou seja na norma e de suas fontes. Diz o artigo 1° do Código Penal: "Não haverá crime, nem pena, sem lei anterior que o defina". Significa que toda definição jurídica dada a um fato jurídico penal, só pode ser originária de um texto legal. Pergunta-se: A definição jurídica de um crime exaure-se no texto da lei penal? Em outras palavras: a lei penal cumpre, exclusivamente, a função de imprimir definição jurídica (função normativa) aos crimes? Por óbvio, se radicalizarmos a nossa análise, iremos perceber que, por vezes, o aplicador da lei penal se vale de outras fontes que não a lei para alcançar definição plena de um crime.
Vejamos alguns exemplos: 1) uma relação sexual forçada cometida pelo marido pode ser definido como crime de estupro ou não, conforme se adote uma ou outra corrente jurisprudêncial; 2) uma constrangimento, mediante grave ameaça, para a entrega de um valor em dinheiro, onde a vítima não se intimida, pode ser caracterizada de tentativa de extorsão ou não caracterizar crime algum, conforme a linha jurisprudencial; 3) um assassinato cometido com 16 facadas na vítima pode ser definido juridicamente como homicídio simples ou homicídio qualificado por meio cruel, conforme enquadremos ou não as 16 facadas como meio cruel.
A doutrina e a jurisprudência, em diversas hipóteses, cumprem uma função normativa complementar, ora delimitanto o alcance de alguns tipos penais, ora definindo os limites de conceitos semanticamente vagos contidos em tais dispositivos legais, como, por exemplo, o de “meio cruel”. Pois bem, delimitar o sentido de um conceito vago semanticamente, visando aplicá-lo a um caso concreto, não significa o mesmo que “exercer função normativa complementar”, ou seja, participar da definição jurídica dada ao fato? Por óbvio, do ponto de vista metodológico, levando-se em conta os conceitos estrutural e funcional de norma, a jurisprudência utilizada pelo penalista está compondo a norma jurídico-penal, ou seja, definindo o crime juntamente com a lei, a despeito do princípio da reserva legal. O mesmo ocorre quando o jurista se socorre da doutrina e jurisprudência para delimitar o âmbito de incidência (o alcance) de um determinado dispositivo legal. Assim, é possível afirmar-se que o direito penal se utiliza, como fonte complementar à lei penal, da jurisprudência e da doutrina. O que a doutrina e a jurisprudência não podem fazer no âmbito penal em virtude do princípio da reserva legal é inovar, criar juridicidade praeter legem (atividade integradora, consitente em identificar e colmatar lacunas da lei) ou contra legem (construção de decisões judiciais que se opõem ao texto legal), ou seja, atuar normativamente sem a existência de qualquer texto legal, ou então contra ele, como o se faz necessário, e muito, no âmbito do direito de família, por exemplo.
A jurisprudência e a doutrina, nesta perspectiva, ao complementarem a definição legal do que seja crime, ou mesmo por delimitarem o âmbito de incidência de um determinado dispositivo legal, estão cumprindo sua função normativa. Isto é, ser “conteúdo jurídico-normativo”, ao menos enquanto um fragmento de norma, um parte que a compõe. Aliás, diz-se que a doutrina e a jurisprudência são fontes do direito não porque delas emergem normas jurídicas completas e independentes – eis novamente uma falsa concepção de norma pela qual ela surge inteira e como um dado acabado de uma das fontes do direito. Na realidade, diz-se que a jurisprudência e a doutrina são fontes complementares em nosso sistema, justamente porque atuam normativamente, via de regra, em torno de texto legal, dando-lhe acabamento, melhor delimitação, complementando-o e definindo o seu alcance. Portanto, não são normas inteiras e acabadas que emergem destas fontes, mas conteúdos normativos de natureza fragmentária, fragmentos de norma que irão compor, uma vez conexionados a outros fragmentos normtivos, a norma jurídica dotada de completude lógico-normativa, ou seja, a totalidade dos conteúdos normativos que imprimem definição jurídica a um determinado fato social. Em outras palavras, a norma completa pressupõe lógicamente todos os fragmentos (dispositivos legais, definições e excertos jurisprudenciais e doutrinários, conteúdos consuetudinários, etc.) que, de uma forma ou de outra, cumprem função normativa – dar definição jurídica às inúmeras dimensões do fato judicializado.
Ora, do mesmo modo que não emanam normas jurídicas completas da doutrina e da jurisprudência – apenas fragmentos normativos – há que se afirmar, também, que não há norma, a rigor, que se exaure na lei. Esta, apesar de fonte principal do direito, depende da atuação normativa complementar da jurisprudência e da doutrina para a sua adequada aplicação.
Bem observado, as leis recém editadas costumam ser de difícil aplicação, eis que não receberam ainda a adequada lapidação e complementação normativa doutrinária e jurisprudêncial.
Em outra palavras, o que se pretende afirmar aqui é que a norma jurídica do direito estatal vigente, em seu núcleo mais significativo, é produto de uma síntese semântica entre a lei - que constitui o seu núcleo de significação normativa - a jurisprudência e a doutrina, que lhe são complementares, e, eventualmente, com contribuições dos costumes e outras valorações ético-sociais.
Como vimos, em regra a definição jurídica de um crime não se exaure no texto legal. Necessário outras ferramentas complementares que vão ajudar nesse papel de dar definição, de delimitar o fato jurídico, de desenhar os exatos limites do fato que adquirem significação jurídica, ou seja, que contribuem na determinação da consequência jurídica. Por exemplo: o penalista vale-se da jurisprudência para definir o que seja meio cruel, com vista a qualificação de um crime de homicídio. Ora, aqui a função da jurisprudência está sendo a normativa, eis que, ao emprestar fundamento, completando à operação subsuntiva que enquadra um determinado fato concreto à regra que qualifica o homicídio pelo meio cruel, a normatividade jurisprudencial está, entre outras coisas, delimitando não apenas o fato jurídico, como determinando os limites da própria consequência jurídica, eis que a pena, no caso, será maior. Assim, conforme a delimitação do fato jurídico “crime”, será possível delimitar a sua conseqüência “pena”. Então, neste exemplo, a jurisprudência tem o condão de interferir no tempo de aprisionamento do delinqüente. Portanto, cumpre função normativa, ou seja, a de participar da definição jurídica do fato, a despeito do artigo 1° do Código Penal.
A despeito destas observações, não é possível afirmar-se a inutilidade do princípio da reserva legal para conter a normatividade criminal nos estreitos limites da legalidade. Antes, tal princípio e de positivação absolutamente indispensável, e representa a vinculação máxima possível do órgão judicante ao texto legal. Em direito penal, as fontes complementares são utilizadas exclusivamente para solucionar o problema da plurivocidade da lei (indeterminação de sentito, ou seja, ocorrência de vários sentidos válidos e possíveis, como dizia Kelsen em sua teoria pura). Assim, a jurisprudência criminal pode resolver ambiguidade e vagueza semânticas dos conceitos contidos na lei penal, de modo a delimitar a sua juridicidade; entrentanto, em face do princípio da reserva legal, jamais poderá inovar em sede normativa, como é possível em outros ramos do direito. Ou seja, jamais uma norma penal irá emergir exclusivamente de outras fontes do direito, sem que seu núcleo decorra imediatamente da lei. Este é o verdadeiro alcance do princípio da reserva legal. Por outro lado, é importante que se tenha em mente: há uma ilusão legalista no princípio da reserva legal, que afirma implicitamente que um texto legal possa conter todo o direito objetivo, e, deste modo, possa exaurir a definição jurídica dos fatos. Essa ilusão é séria e traz profundas conseqüências práticas. Vejamos como funciona o raciocínio normativo do penalista quando opera o sistema jurídico penal.
CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DO DISCURSO NORMATIVO LEGAL: TEXTO CONCISO E ELÍPTICO
A primeira idéia que o jurista deve ter em mente, quanto busca identificar o que seja a norma jurídica através do seu conceito funcional (a norma é composta por tudo aquilo que cumpre a função de definir o fato jurídico em todas as suas relevâncias), é que cada fato jurídico é juridicizado por apenas uma norma jurídica: 1 (um) fato jurídico; 1 (uma) norma jurídica. Este critério é fundamental para mantermos o rigor metodológico. Deste modo, podemos concluir que a dimensão legal de uma norma jurídica envolve, em regra, vários dispositivos legais ao mesmo tempo.
A função da norma penal, como vimos, é dar a definição jurídica a um fato social, constituindo-o como um crime. Ora, ao constituir o fato como crime por força de sua incidência, a norma jurídica delimita-lhe a juridicidade, ou seja, os aspectos do fato concreto que possui significação jurídica, valor jurídico. O fato é jurídico em tudo aquilo que está previsto normativamente, ou seja, tudo aquilo que está descrito no suporte fático hipotético da norma jurídica. Dentro destes limites normativos, avalia-se juridicamente a conduta em concreto, com todas as suas relevâncias jurídicas, delimitando assim, por exemplo, a intenção do agente do fato típico, suas motivações para aquele fato, sua participação no núcleo da ação criminosa, sua idade, antecedentes criminais, sua relação com a vítima, etc.). Todas estas relevâncias estão previstas na hipótese fática (SFH) norma jurídica que irá definir os limites de significação jurídica daquele crime (conteúdo e extensão do fato jurídico).
Têm-se, por exemplo, que num crime de roubo cometido contra um idoso, duplamente qualificado por uso de arma de fogo e concurso de agentes, um deles adolescente, o outro com menos de 21 anos, o núcleo da parte legal da norma jurídica que irá definir o crime é composta, no mínimo, pelos artigos 157, § 2º, incisos I e II, artigo 61, inciso II, alínea “h”, artigo 65, inciso I, todos eles indicando relevâncias que compõe o suporte fático na norma (SFH), fundamentais para a correta delimitação da consequência jurídica (conteúdo e extensão da eficácia jurídica, seja, do direito subjetivo de punir e do correspondente dever de cumprir pena). Diz-se “o núcleo da parte legal” ou então “no mínimo” porque deixamos de indicar outros dispositivos que irão compor esta norma penal, eis que muito óbvios, como por exemplo o artigo 14, I (crime consumado), artigo 18, I (doloso, ou não haveria crime), artigo 26 e 27 (imputabilidade penal), etc.
Para compreender que, ao compor uma norma legal, o jurista dispõe de vários dispositivos de lei, basta lembrar que os textos legais, além de 1)“concisos”, ou seja, econômicos no uso de palavras, são, sobretudo, 2) “elípticos”. A elipse, como figura de linguagem, traduz uma “omissão de palavras”, ou seja, caracteriza um enunciado que pressupõe outros que estão subentendidos e que lhe são, portanto, implícitos. Desta forma, o texto elíptico pressupõe o que está subentendido para adquirir seu sentido completo. Ora, em outras palavras, quando sustentamos que o texto legal é elíptico, somos obrigados a admitir sua natureza fragmentária. Deste modo, os dispositivos legais constituem apenas fragementos de norma jurídica, e nunca uma norma completa, ainda que eles contenham em sua estrutura, um SFH (incompleto) e um P (também incompleto).
O “matar alguém”, por exemplo, do artigo 121 do Código Penal, é uma evidente elipse, pressupõe uma série de outros enunciados, contidos em outros dispositivos do código, para adquirir seu sentido completo. Pressupõe, antes de mais nada, a tipicidade subjetiva (artigo 18) e a imputabilidade do agente (artigos 26 e 27), pressupõe que não tenha ocorrido qualquer excludente da antijuridicidade (artigos 23, 24 e 25), pressupõe o artigo 14 para definir a sua consumação, e assim por diante, formando uma série de enunciados subentendidos que, se tentarmos explicitá-los todos, jamais conseguiremos.
Esta característica do enunciado legal sugere a verdadeira atividade do jurista que o aplica. Deste modo, sendo fragmentários os enunciados legais, a obra do jurista é compô-los como forma de elaboração da norma jurídica para um determinado caso concreto.
É importante assinalar, por último, que o pensamento jurídico nunca atua de forma abstrata, eis que só ó possível pensarmos uma norma jurídica partindo do fato concreto. O pensamento jurídico parte do fato para a norma, e não o contrário, como tendemos supor. Tentemos elaborar uma norma jurídica completa, que regule genericamente o homicídio, para percebermos a dificuldade de lidarmos abstratamente com a norma jurídica.
RELAÇÕES TRANSFORMACIONAIS ENTRE FRAGMENTOS NORMATIVOS NORMATIVOS – um modelo de racionalidadenormativa
Prova que o artigo 121 do Código Penal não constitui uma norma jurídica completa reside no fato de que são inúmeros os fatos que se subsumem a ele e que não fazem irradiar a consequência jurídica nele prevista. Por exemplo, uma cobra que morde o pé do lavrador não cumpre pena, embora tenha “matado alguém”. Do mesmo modo, o infante que brinca com a arma de fogo do pai incauto, matando o irmão sem querer. Ou mesmo o louco que comete homicídio, ou então o que mata para não morrer, em atitude de defesa. Todas estas hipóteses, além de outras tantas, são exemplos de “matar alguém”, subsumindo-se, por si só, ao artigo 121, sem que no entanto apliquem as consequências jurídicas ali previstas. É que o artigo 121, isoladamente, não constitui uma norma jurídica. A proposição normativa completa não pode admitir exceção, sob pena de comprometer o rigor necessário à aplicação do direito.
Busquemos, portanto, a norma jurídica completa que regula o homicídio. Como se viu, ela é produto de “correlações” entre inúmeros dispositivos legais, à qual daremos o nome de relações transformacionais, o seja, um procedimento complexo que o pensamento jurídico opera com tais dispositivos, visando construir a norma jurídica completa.
A relação transformacional de enunciados (framentos) normativos consiste, basicamente, em “transformar” dois enuciados normativos um único apenas, mas que contenha a normatividade de ambos. Assim, por exemplo, o pensamento jurídico opera a relação transformacional entre o enunciado “Somente ser humano é sujeito do direito penal” e o enuciado “matar alguém, pena 6 a 20 anos”, resultando num enunciado que contém os dois primeiros: “Ser humano, matar alguém, pena 6 a 20 anos”. De posse deste último, busca-se um novo enunciado para relacionar-se transformacionalmente com ele, construindo, assim, sucessivamente, passo a passo, a norma jurídica.
Bem observado, a proposição normativa resultante da relação transformacional acima operada afasta a hipótese da cobra que mata o lavrador, mas não afasta as demais. Toma-se, portanto, este enunciado, o relaciona-se com o enunciado contido no artigo 27, pelo qual “os menores de 18 (dezoito) anos são inimputáveis”. Resultado desta relação transformacional: “Ser humano, maior de dezoito anos, matar alguém, pena 6 a 20 anos”. Fica afastada a hipótese do infante que mata o irmão, mas não a do louco. Procede-se nova relação transformacional, desta feita com o artigo 26, resultando que “Ser humano, maior de 18, com desenvolvimento mental completo, inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, matar alguém, pena 6 a vinte anos”. Resta ainda, no exemplo dado, a exceção do sujeito que mata em legítima defesa, pelo que podemos concluir que ainda não estamos diante da norma jurídica completa. O próximo passo em direção a ela, é relacionar o enunciado normativo resultante com o artigo 23 do CP, resultanto que “Ser humano, maior de 18, com desenvolvimento mental completo, inteiramente capaz de compreender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, matar alguém, desde que não em legítima defesa, pena 6 a vinte anos”.
Deste modo, ainda que se afastem as excessões apontada, é possível encontrar inúmeras outras excessões subsumíveis a este enunciado, onde também não se aplica a consequência jurídica nele contida. Portanto, a norma não está ainda completa. Aliás, por mais que tentemos, ela jamais se completará. Há um erro irrecuperável nesta estratégia: o pensamento jurídico nunca opera abstratamente. Somente é possível alcançarmos uma norma jurídica completa se raciocinarmos a partir de um fato concreto. O caminho do pensamento jurídico que opera o sistema judicial parte sempre do fato concreto, sub judice, para a norma jurídica, que se concretiza como norma completa na sentença judicial transitada em julgado.
Pelo exposto depreende-se que a norma jurídica está fragmentada em diversas proposições espalhados pelo Código, na sua dimensão legal (As três dimensões de norma, que se pode encontrar mais comumente em uma sentença são as dimensões legal, jurisprudência e doutrinária). A dimensão legal encontra-se esparsa na Lei, fragmentada, já que a lei tem uma estrutura elíptica e é preciso remontá-la para que se possa percebê-la em sua totalidade, para o caso concreto. Em sua integralidade possível, aproximada.
Duas, portanto, são as características fundamentais do texto legal: a concisão de linguagem e o fato de serem elípticos. São técnicas ínsitas ao domínio da elaboração legislativa. Se não observássemos tais técnicas, as leis seriam imensas. Imaginem o código penal, por exemplo, se repetisse a cada tipo da parte especial todas as relevâncias contidas na parte geral, pelo que cada artigo teria um texto absurdamente gigante e repetitivo. Quando se diz “matar alguém”, em verdade se está implicitando uma série de conteúdos normativos contidos na parte geral, que ali definem o crime culposo, doloso, as excludentes de ilicitude, etc., que não precisam estar reproduzidas no artigo 121, na parte especial.
Outras características do texto legal tornam complexa a sua aplicação. Deste modo, têm-se que, apesar de conciso e elíptico, o texto legal não consegue deixar de ser plurívoco, ou seja, ter várias possibilidades de sentido, tal como Kelsen reconhece no último capítulo de sua Teoria Pura, admitindo interpretações diversas, ora bastante díspares, e até mesmo contraditórias.
NORMA E VALOR: O CARÁTER CONSUETUDINÁRIO DAS FONTES COMPLEMENTARES DO DIREITO (COSTUMES, JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA)
Salvo a lei, todas as demais fontes têm uma origem consuetudinária: gestam-se paulatinamente, ou seja, pela repetição de conduta. O costume, por exemplo, é conduta social repetida, ou melhor, é norma que emerge da repetição de conduta social. Mas não é só o costume que tem origem consuetudinária. Quais são as fontes complementares do direito? A lei é a principal fonte do nosso sistema. É a fonte por excecência. Complementarmente a ela vêm a 1) jurisprudência, 2) a doutrina e o 3) costume. Já no campo do direito penal, tais fontes complementares são utilizadas com muitas restrições, fudamentalmente em razão do princípio da reserva legal. Alguns autores, inclusive, não reconhecem tais fontes no direito penal. Em outros ramos do direito elas complementam o caráter normativo da lei, ora explicitando-a, ora até mesmo criando normatividade contra a própria lei. Apesar do mito de que não existe jurisdição“contra legem”, o fato é que os sistemas judiciais modernos, adotando fonte complementares, por vezes decidem contra a ratio legis. No entanto, a excepcionalidade de tal fato afirma a regra segundo a qual se deve jurisdicionar sempre secundum legem e, não sendo possível isto, deve-se identificar a lacuna e criar a solução judicial praeter legem, que é atividade integradora (colmatação de lacuna).
Num processo judicial, no contraditório que ali se agita, argumenta-se com a lei, com a doutrina, com a jurisprudência. São os principais fontes do direito no mundo moderno. O costume que já foi o principal, hoje é o mais frágil. Eventualmente, consegue-se arrancar uma argumento de ordem consuetudinária. Mas, o costume é de origem consuetudinária, ele é uma norma que emerge da repetição de condutas.
O que orienta a conduta de cada pessoa humana, isoladamente considerada? O homem, do ponto de vista de sua subjetividade, é uma personalidade, é alguém que se conduz com um certo perfil, é uma inteligência: um sistema de conceber as coisas da vida e de valorá-las. Uma capacidade intelectual de perceber as coisas e capacidade anímica de valorá-las. O valor é que orienta a conduta individalmente falando. Por isso é muito mais normativo, do ponto de vista social, a moral e a religião do que o direito. A maior parte das repressões que impedem atitudes antisociais não são do âmbito juridico-normativo: são do âmbito religioso e moral.
Valor e norma, no fundo, são dois lados de uma mesma moeda. Ou seja, se A tem uma valor e um determinado grupo comunga um valor contrário, A é considerado diferente. Mas, se o seu valor começa a ser comungado por todos, esse valor se transforma em norma para aquele grupo. Mas valor não é uma coisa subjetiva e norma não é uma coisa objetiva? Aonde está a resposta para este paradoxo?
Valor é subjetivo, por óbvio. No entanto, quando nós comungamos o mesmo valor, para efeito desse grupo esse valor torna-se objetivo, ou seja, torna-se uma norma de conduta. Assim, norma é uma valoração objetivada pelo critério da comunhão paulatina do valor.
Não só a fonte costume tem origem consuetudinária, ou seja, construindo um valor que vai tomando conta e vai se objetivando pela repetição de condutas. Isso também está na jurisprudência. E a conduta que a jurisprudência faz repetir para se constituir enquanto norma (enquanto valoração objetivada) é a conduta decisória dos juízes. Jurisprudência é uma norma jurídica que emerge da repetição de condutas decisórias dos juízes, cometida nas decisões judiciais (jurisdição).
Por outro lado, a sentença, como um todo, não caracteriza apenas uma conduta decisória. Portanto, o que gera jurisprudência - a repetição de conduta decisória - não se confunde com “repetição de sentença judicial” porque cada sentença judicial tem vários conteúdos decisórios. Deste modo, as sentenças judiciais podem ser díspares mas, sob determinado aspecto elas comungam o mesmo conteúdo decisório e, neste específico aspecto normativo, formam jurisprudência.
Isto é jurisprudência e ela traduz, também, esse fenômeno da valoração objetivada, um valor contido em conteúdos decisórios de sentenças judiciais e que vai sendo paulatinamente comungado entre os juízes de direito. Em regra a jurisprudência surge complementarmente à lei justamente nesses conceitos contidos na lei típicos de uma linguagem natural, que são conceitos valorativos e os conceitos indeterminados (que iremos estudar adiante no curso), isto é, certas palavras de uso comum, utilizadas pelo legislador, e que carecem de um juízo de valor complementar para sua concreção, ou seja, para a sua aplicação à uma realidade concreta que ela designa genéricamente. A concreção do conceito de mulher honesta é dizer: Fulana de Tal é honesta. Aplicou-se um conceito a uma realidade concreta “Fulana de Tal”.
Da mesma forma a doutrina. Quando se diz que doutrina é fonte do direito não se quer dizer com isto que qualquer coisa escrita sobre direito é doutrina no sentido de fonte jurídica, no sentido de ser todo e qualquer texto doutrinário dotado de um conteúdo normativo vigente (norma). Como a doutrina pode constituir norma jurídica? Ora, quando se tem uma opinião teórica devidamente fundamentada sob determinados textos legais isolados, ou institutos jurídicos inteiros, pelo que tal opinião doutrinária fundamentada, ao comentar o texto legal explicitando o seu sentido, atua complementando a legislação, definindo alguma coisa que está indefinida no texto legal, lapidando o texto legal. Portanto, em regra, faz o mesmo papel da jurisprudência. Às vezes a jurisprudência antecede a doutrina; às vezes ela é posterior à jurisprudência e a comenta. Mas, a doutrina só se transforma em norma também por um viés consuetudinário: a repetição de opinião de doutores, devidamente fundamentadas, doutas opiniões que os romanos chamavam há 2.000 anos de “comunis opinium doctorum”. É apenas nesse sentido que a doutrina pode ser considera fonte do direito, ou seja, pode interferir normativamente na construção das decisões judiciais, e sempre a partir da Lei, complementando-a, lapidando o seu sentido. Portanto, contribui para dar um sentido mais unívoco à lei. A lei, assim, toma uma função nuclear no nosso sistema: somos um Sistema de Direito Legislado. No entanto, as outras fontes (jurisprudência, doutrina e constume) também operam normativamente.
Portanto, sendo a norma jurídica este fenômeno complexo em que interferem em sua elaboração diversas fontes concomitantemente, têm-se por fundamental desenvolver uma teoria da norma jurídica. Somente assim poderemos determinar, com maior clareza, os limites do fato jurídico e, como decorrência, os limites das consequências jurídicas que advém desses fatos, e devem ser jurisdicionadas nos processsos judiciais. Como se chega a uma definição jurídica de um determinado fato, como se extrai da prova colhida o que é jurídicamente relevante, como se articulam essas relevâncias jurídicas a respeito de se limitar o conteúdo e a extensão da consequência jurídica? Este é o papel do operador do Direito. O domínio de sua atividade, por óbvio, depende destas respostas. Vejamos o que seja o fato jurídico, e como se organiza a sua fenomenologia segundo a melhor doutrina tradicional, que é a de Pontes de Miranda, reescrita por Marcos Bernardes de Mello no seu texto “Teoria do Fato Jurídico: plano da existência”. Somente no interior de uma Teoria do Fato Jurídico, é que poderemos estudar as especificidades da norma de direito privado.
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