BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. São Paulo: Polis, 1989.
Capítulo 1 – Da norma jurídica ao ordenamento jurídico
1. Segundo Bobbio, não é possível da uma definição do direito do ponto de vista da norma jurídica considerada isoladamente, pois uma definição satisfatória do direito só é possível se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamento jurídico.
2. “O termo ‘direito’, na mais comum acepção de direito objetivo, indica um tipo de sistema normativo, não um tipo de norma.” (p. 31)
3. “O ordenamento jurídico (como todo sistema normativo) é um conjunto de normas. Essa definição geral de ordenamento pressupõe uma única condição: que não constituição de um ordenamento concorram mais normas (pelos menos duas), e que não haja ordenamento composto de uma norma só.” (p. 31)
4. Em todo ordenamento encontramos dois tipo de normas: as de conduta – que prescrevem como a conduta deve ser – e as normas de estrutura (ou de competência) – que estabelecem as condições e os procedimentos através dos quais emanam normas de conduta válidas.
5. Não é possível um ordenamento formado por uma única regra de conduta. Isso se deve ao fato de ser inconcebível que um ordenamento regule todas as ações possíveis com uma única modalidade normativa.
6. Já um ordenamento com apenas uma norma de estrutura é concebível, como por exemplo na monarquia absoluta. Entretanto, “o fato de existir uma norma de estrutura tem por conseqüência a extrema variabilidade das normas de conduta no tempo, e não a exclusão de sua pluralidade em determinado tempo”. (p.35)
7. “Se um ordenamento jurídico é composto de mais de uma norma, disso advém que os principais problemas conexos com a existência de uma ordenamento são os que nascem das relações das diversas normas entre si.” (p. 34). Daí, tem como problemas:
- Em relação à unidade e de que modo se constituem; problema discutido pela hierarquia das normas;
- A respeito de se o ordenamento jurídico constitui um sistema; problema das antinomias jurídicas;
- A questão da completude do ordenamento e suas eventuais lacunas; e
- As inter-relações entre ordenamentos diversos, o reenvio de um ordenamento a outro.
Capítulo 2 – A unidade do ordenamento jurídico
8. “Em cada ordenamento o ponto de referência último de todas as normas é o poder originário, que dizer, poder além do qual não existe outro pelo qual se possa justificar o ordenamento jurídico. Esse é o ponto de referência necessário [..] para fundar o ordenamento jurídico. Chamamos esse poder originário é a fonte das fontes.” (p. 41)
9. Os ordenamentos jurídicos são complexos, isto é, suas normas provêm de mais de uma fonte. A necessidade de regras de conduta humana numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder ou órgão em condições de satisfazê-las sozinho. Há duas razoes fundamentais para essa complexidade: a absorção de um ordenamento pré-existente e a criação de um direito novo.
10. Fontes de direito “são os atos ou fatos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas”. (p. 45)
11. Os ordenamentos complexos operam a partir dos seguintes expedientes: a recepção de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes, e a delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores.
12. A teoria escalonada do ordenamento jurídico de Kelsen “serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento jurídico não estão todas num mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. [...] é a norma fundamental.[...] É ela que dá unidade ao ordenamento”. (p. 49) Todas as fontes do direito podem ser remontadas essa uma mesma norma.
13. “Devido à presença, [...], de normas superiores e inferiores, ele [ordenamento] tem estrutura hierárquica. As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica.” (p. 49)
14. Ato executivo é qualquer ato no qual um indivíduo executa a obrigação contraída com outrem. O ato executivo é o cumprimento de uma regra de conduta derivada do contrato. A referência última do ato executivo são as normas constitucionais, o que o faz pertencer ao sistema normativo escalonado. São as bases da pirâmide hierárquica das normas, sendo apenas executoras (do contrato), nunca produtoras.
15. Um processo de produção jurídica é aquele que é percebido vendo a pirâmide hierárquica de cima para baixo: o processo pelo qual as normas superiores produzem as inferiores.
16. A produção jurídica “é a expressão de um poder (originário ou derivado), a execução é o cumprimento do dever”. (p. 51)
17. Quando um órgão superior atribui a um órgão inferior um poder normativo, não lhe atribui poder ilimitado, estabelece limites entre os quais pode ser exercido. Os limites são de dois tipos: relativos ao conteúdo (limites materiais) e relativos à forma (limites formais). Os limites materiais referem-se ao conteúdo da norma que o inferior está autorizado a emanar, podendo ser positivo (quando impõe estabelecer normas de determinada matéria) ou negativo (quando proíbe estabelecer normas de determinada matéria). Os limites formais referem-se à forma, ao modo ou ao processo pelo qual a norma inferior deve ser emanada.
18. “Chamam-se ‘juízos de equidade’ aqueles em que o juiz está autorizado a resolver uma controvérsia sem recorrer a uma norma legal preestabelecida. O juízo de equidade pode ser definido como autorização, ao juiz, de produzir direito fora de cada limite material imposto pelas normas superiores.” (p. 56)
19. Para Bobbio, como já visto direito – regra formal da conduta humana – é diferente de norma. Esta é definida por ele como “imposição de obrigações (imperativo, comando, prescrição, etc.)”. (p. 58)
20. O poder constituinte é o poder do qual derivam as normas constitucionais, o poder último, supremo, originário, num ordenamento jurídico.
21. Uma norma jurídica pressupõe um poder jurídico. Todo poder normativo pressupõe, por sua vez, uma norma que o autoriza a produzir normas jurídicas. Dado o poder constituinte como poder último, devemos pressupor uma norma que atribua a ele a faculdade de produzir normas jurídicas. Essa norma é a norma fundamental, que atribui aos órgãos constitucionais poder de fixar normas válidas e impõe a todos aqueles aos quais se referem as normas constitucionais o dever de obedecê-las. É, então, atributiva e imperativa.
22. A norma fundamental não está expressa, é pressuposta para fundar o sistema normativo. Isso não significa que ela não exista: a ela nos referimos como o fundamento subentendido da legitimidade de todo sistema.
23. Podemos responder à questão sobre o modo pelo qual é estabelecida a pertinência de uma norma a um ordenamento jurídico, ou melhor, a sua validade, remontando de grau em grau, de poder em poder, até a norma fundamental. A norma fundamental é, então, o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence ou não a um ordenamento, sendo o fundamento de validade de todas as normas do sistema. Quando uma norma é válida, isto é, está de acordo com o ordenamento jurídico e foi posta por autoridade competente, com poder legítimo de estabelecer normas (de onde vem esse poder? qual a norma que o autoriza? – subir de grau em grau), é obrigatório se conformar com ela.
24. Postulados são aquelas proposições primitivas das quais se deduzem outras, mas que, por sua vez, não são dedutíveis. A norma fundamental exerce, no ordenamento jurídico, a função de postulado. Os postulados são colocados por convenção ou por evidências destes (o mesmo se pode dizer da norma fundamental).
25. A norma fundamental não tem fundamento, porque,se tivesse, não seria mais norma fundamental. A fundamentação da norma fundamental na é questão do direito, especulando sobre ela estaríamos saindo da teoria do direito positivo e entrando na secular discussão em torno do fundamento, ou melhor, da justificação do poder (para Bobbio,a força). A força é a verdadeira fonte última de todo poder.
26. O poder originário é a verdadeira fonte última de todo o poder: é o conjunto de forças políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico.
27. Quando a norma fundamental diz que se deve obedecer ao poder originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos submeter àqueles que tem poder coercitivo.
28. A força é um instrumento necessário para exercer o poder, mas não para justificá-lo.
29. Além disso, a força é necessária para a realização do direito, pois coloca o poder como fundamento último de uma ordem jurídica positiva.
30. No entanto, isso não reduz o direito à força; só demonstra que ela é um instrumento para a realização do direito.
31. A norma fundamental está na base do direito como ele é (direito positivo), e não como deve ser (direito justo). O direito como ele é, é expressão dos mais fortes. Tanto melhor, então, que os mais fortes sejam os mais justos.
32. Bobbio defende que a força é um instrumento para a realização do Direito. Kelsen, ao contrário, sustenta que a força é o objeto de regulamentação jurídica, isto é, que por Direito deve-se entender não um conjunto de normas se tornam válidas através da força, mas um conjunto de normas que regulam o exercício da força numa determinada sociedade.
Quando Kelsen diz que o Direito é um ordenamento coercitivo, quer dizer que é composto por normas que regulam a coação. Kelsen assim reduziria, segundo crítica de Bobbio, o direito às normas secundárias, que podem ser definidas como aquelas que regulam o modo e a medida em que devem ser aplicadas as sanções. Essa definição se restringe ao conteúdo das normas, limitativa (para Bobbio, a juridicidade de uma norma não depende de seu conteúdo, mas simplesmente por fazer parte de ordenamento jurídico vigente, podendo ser remontada até a norma fundamental. Para Bobbio, as regras para o exercício da força são apenas aquelas ligadas à sanção, e não todas as normas.O objetivo de todo legislador, para ele, não é organizar a força, mas organizar a sociedade mediante a força.
Capítulo 3 – A coerência do ordenamento jurídico
1. O problema tratado por Bobbio neste capítulo é se um ordenamento jurídico, além de uma unidade, constitui também um sistema, isto é, uma unidade sistemática. Um sistema é “uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem”.(p. 71) Esses entes não devem se relacionar apenas com o todo, como também entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que os compõe então num relacionamento de coerência entre si.
2. Kelsen distingue entre os ordenamentos jurídicos dois tipos de sistema, um estático e outro dinâmico.
3. O sistema estático é aquele no qual as normas estão relacionadas umas às outras como as proposições de um sistema dedutivo, isto é, se derivam umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral, postulados ou axiomas. As leis em um sistema estático estão deduzidas de uma primeira lei geral, e, portanto, estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo.
4. Já o sistema dinâmico é aquele no qual as normas que o compõe derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, ou seja, não através de seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou: uma autoridade inferior deriva de uma superior, até que se chega a uma autoridade suprema que não tem nenhuma acima de si. A relação entre essas normas não é, então, material, e sim formal.
5. Segundo Kelsen, os ordenamentos jurídicos são sistemas dinâmicos, no qual o enquadramento das normas é julgado com base num critério meramente formal, referente à maneira como elas foram postas, independente do seu conteúdo. Um exemplo de ordenamento estático seria o ordenamento moral, no qual o enquadramento das normas é fundado sobre aquilo que elas prescrevem, e não sobre a autoridade da qual derivam.
6. Os três significados da palavra sistema utilizados pela teoria do direito são:
- Um primeiro significado é o mais próximo ao significado sistema na expressão ‘sistema dedutivo’. Em tal acepção, diz-se que um dado ordenamento é um sistema enquanto todas as normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais. Essa acepção foi mais usada pelos jusnaturalistas.
- Um segundo significado é encontrado na ciência do direito moderno, do célere sistema do direito romano atual. Nesse sentido, sistema é usado para indicar um ordenamento da matéria, realizado através do processo indutivo, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais, e classificações ou divisões da matéria inteira (semelhante a uma classificação taxonômica).
- O terceiro é o considerado por Bobbio como o mais interessante. Diz-se que o ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis, estabelecendo uma relação entre as normas, que é a de compatibilidade. Aqui, sistema equivale à validade do principio que exclui a incompatibilidade das normas.
7. O ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. A tese de que o ordenamento jurídico constitua um sistema no terceiro sentido pode-se exprimir dizendo que o Direito não tolera antinomias.
8. Antinomia é a denominação própria da situação de normas incompatíveis entre si, uma dificuldade tradicional frente à qual se encontraram os juristas de todos os tempos. Definimos como antinomia como aquela situação na qual são colocadas em existência duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade.
9. Para que possa ocorrer antinomia são necessárias duas condições:
- Duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento
- As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se quanto ao âmbito de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material. Não constituem antinomia duas normas que na coincidem com respeito a: tempo, espaço, pessoa e matéria.
10. As antinomias podem ser distinguidas em três tipos diferentes, conforme a maior ou menor extensão do contraste entre as duas normas:
· se as duas normas incompatíveis têm igual âmbito de validade, a antinomia é total-total: em nenhum caso uma das duas normas pode ser aplicada sem entrar em conflito com a outra.
· se as duas normas incompatíveis têm âmbito de validade em parte igual e em parte diferente, a antinomia subsiste apenas para a parte comum, e é parcial-parcial: cada uma das normas tem um campo de aplicação em conflito com a outra, e um campo de aplicação no qual o conflito não existe.
· se, de duas normas incompatíveis, uma tem âmbito de validade igual ao da outra, porém mais restrito, isto é, seu âmbito de validade é igual a uma parte da outra, a antinomia é total-parcial: a primeira norma não pode ser em nenhum caso aplicada sem entrar em conflito com a segunda e a segunda tem uma esfera de aplicação em que não entra em contato com a primeira.
11. As antinomias podem ser solúveis ou insolúveis. Nem todas as antinomias são solúveis (podem ser solucionadas) pois há casos de antinomias nos quais não se pode aplicar nenhuma regra pensada para a solução das antinomias e há casos em que se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si. As antinomias insolúveis, então, são aquelas em que o intérprete da norma é abandonado a si mesmo ou pela falta de um critério para solução da antinomia ou por conflito entre os critérios dados.
12. As regras fundamentais para a solução das antinomias são três:
- Critério cronológico – entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior.
- Critério hierárquico – entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior.
- Critério da especialidade – entre duas normas incompatíveis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a especial.
13. No caso de um conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios (por exemplo, entre normas incompatíveis dentro de um mesmo código), a solução geralmente é confiada à liberdade do intérprete, que tem três possibilidades: eliminar uma norma, eliminar as duas normas ou conservar as duas. No primeiro caso, a operação feita pelo juiz chama-se interpretação ab-rogante, mas é uma ab-rogação em sentido impróprio, uma vez que o juiz tem a liberdade de aplicar a norma que considerar mais compatível com o caso, mas não de expeli-la do sistema.
14. No terceiro caso (conservar as duas) prova que é possível conservar duas normas incompatíveis em um sistema jurídico – e essa solução é a mais comum entre os intérpretes. Para isso, o juiz deve demonstrar que as normas não são incompatíveis, que a incompatibilidade é apenas aparente: ele elimina, portanto, a incompatibilidade através, por exemplo, de uma interpretação corretiva, forma de interpretação que pretende conciliar duas normas aparentemente incompatíveis para conserva-las ambas no sistema por meio de uma modificação leve ou parcial do texto.
15. Uma antinomia de segundo grau é aquela em que não se trata mais de incompatibilidade entre normas, mas da incompatibilidade entre os critérios válidos para a solução das incompatibilidades das normas. As antinomias de segundo grau são solúveis apenas havendo regras tradicionalmente admitidas para a solução de conflitos de critérios.
16. Os conflitos entre critérios para a resolução das antinomias de segundo grau são:
· Conflito entre critério hierárquico e o cronológico: quando uma norma anterior superior é antinômica em relação a uma norma posterior inferior. Se aplicar o critério hierárquico, prevalece a primeira; se aplicado o critério cronológico, prevalece a segunda. O critério hierárquico prevalece sobre o cronológico, caso contrário o critério hierárquico seria tornado vão, pois não haveria o poder das normas superiores de não serem ab-rogadas pelas inferiores.
· Conflito entre o critério de especialidade e o cronológico: quando uma norma anterior-especial é incompatível com uma norma posterior-geral. Aplicando o critério da especialidade, dá-se preferência à primeira; aplicando-se o critério cronológico, privilegia-se a segunda.A lei geral sucessiva não tira do caminho a lei especial precedente.O critério da especialidade se sobrepõe.
· Conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade: quando entram em oposição os dois critérios fortes entre si, uma norma superior-geral com uma norma inferior-especial. Não há uma resposta segura. A solução dependerá do intérprete. Fazer prevalecer o critério hierárquico sempre seria barrar a adaptação da Constituição ás novas realidades.
A incompatibilidade é, em resumo, um mal a ser eliminado, pressupondo uma regra de coerência: “num ordenamento não devem existir antinomias”. È uma espécie de conselho aos que ditam as leis, mas sujeita a falhas. A coerência não é condição de validade, mas sempre condição de justiça. Duas normas incompatíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas válidas, mas não serão, ao mesmo tempo, eficazes.
17. Quando existem duas normas antinomias, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria.
Capítulo 4 – A completude do ordenamento jurídico
1. Por completude de um ordenamento jurídico entendemos a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular cada caso, isto é, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema. Sistema sem lacunas.
2. Uma lacuna é a falta de uma norma ou de um critério para decidir qual norma deve ser aplicada, isto é, de uma solução.
3. O nexo entre a coerência e a completude está em que a coerência significa a exclusão de toda a situação a qual pertençam ao sistema ambas as normas que se contradizem; a completude significa a exclusão de toda situação na qual não pertençam ao sistema nenhuma das duas normas que se contradizem. Incoerente é o sistema em que coexistem a norma que proíbe e que permite certa ação. Incompleto é o sistema no qual não existe norma (nem permitindo, nem proibindo) que regule uma ação.
4. O dogma da completude é o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz, em cada caso, uma solução sem recorrer à equidade. Por alguns é considerado como um dos aspectos salientes do positivismo jurídico.
5. Bobbio caracteriza o fetichismo da lei como a atitude dos juristas e juízes de se ater escrupulosamente aos códigos: o código é, para o juiz, um prontuário que lhe deve servir infalivelmente e do qual não pode afastar-se.
6. A escola que, pela primeira vez na história, criticou o dogma da completude foi a Escola do Direito Livre, que defendia que o direito estatal não é completo, está cheio de lacunas e, para preenchê-las, é necessário confiar principalmente no poder criativo do juiz, na sociologia jurídica, nas necessidades e na vida social.
7. O espaço jurídico vazio foi o argumento utilizado pelos positivistas de estrita observância para defender a completude do direito. Dizia ele: um caso ou está regulado pelo Direito, e então é um caso jurídico ou juridicamente relevante, ou não está regulado pelo Direito, e então pertence àquela esfera de livre desenvolvimento da atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante. Assim, até onde o Direito alcança com as suas normas, evidentemente não há lacunas; onde não alcança, há espaço jurídico vazio e, portanto, não há lacunas no Direito, mas atividades indiferentes ao Direito.
8. A norma geral exclusiva foi uma segunda teoria que procurou sustentar a completude do direito, pelo fato de que o Direito nunca falta. O raciocínio pode ser resumido assim: uma norma que regula um comportamento não só limita a regulamentação e, portanto, as conseqüências jurídicas que desta regulamentação derivam para aquela conduta, mas ao mesmo tempo exclui daquela regulamentação todos os outros comportamentos. Uma norma que proíbe fumar permite todas as outras condutas que não sejam fumar. Desta forma, todos os comportamentos não compreendidos na norma particular são regulados por uma norma geral exclusiva.
9. A característica da norma geral inclusiva é a de regular os casos não compreendidos na norma particular, mas semelhantes a eles, de maneira idêntica, ou seja, estas normas prevêem as lacunas e estabelecem os modos de preenchimento. Assim, frente a um caso não regulamentado, utilizando a norma geral inclusiva, será resolvido de maneira idêntica ao que está regulamentado; já utilizando a norma geral exclusiva o caso será resolvido de maneira oposta.
10. Os tipos recorrentes de lacunas são os seguintes:
- Próprias (reais) – pertencem ao sistema, estão dentro do sistema. Existem quando há norma geral exclusiva e inclusiva e o caso não-regulamentado pode ser encaixado tanto numa quanto noutra. São solucionadas mediante as leis vigentes e completáveis pelos intérpretes. Se há lacunas próprias, o sistema está incompleto.
- Impróprias (ideológicas) – derivam da comparação do sistema real com o sistema ideal. Existem quando há somente norma geral exclusiva. Só é eliminada pela formulação de novas normas, e são completáveis só pelo legislador.
Esses dois tipos designam um caso não regulamentado pelas leis vigentes num dado ordenamento jurídico.
Existem ainda as leis subjetivas (que dependem de motivo imputável ao legislador, podendo ser voluntárias – quando o legislador deixa de propósito uma lei muito geral a ser interpretada pelo juiz – e involuntárias – quando o legislador comete um descuido) e objetivas (que dependem do desenvolvimento das relações sociais, independentemente da vontade do legislador).
Existem ainda as praeter legem, regras muito particulares que não compreendem todos os casos que podem apresentar-se, e as intra legem, regras muitos gerais que revelam vazios que caberão ao intérprete preencher.
11. Para se completar um ordenamento jurídico pode-se recorrer a dois métodos diferentes, chamados de heterointegração e de auto-integração. O primeiro consiste na integração operada através de recurso a ordenamentos diversos daquele que é dominante.
12. Já a auto-integração é um método para completar o ordenamento que consiste na integração cumprida através do mesmo ordenamento, no âmbito da mesma fonte dominante, sem recorrência a outros ordenamentos e com o mínimo recurso a fontes diversas da dominante.
13. Os métodos de heterointegração consistem no preenchimento através de ordenamentos anteriores ou outros ordenamentos estatais ou através de recurso a fontes diversas daquela que é dominante.
14. Os métodos de auto-integração consistem em dois procedimentos: a analogia e os princípios gerais do direito.
Entende-se por analogia o procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamentado a mesma disciplina que a um caso prescrito semelhante. A fórmula do raciocínio por analogia pode ser expressa assim: M é P, S é semelhante a M, portanto S é P. Destaca-se que a semelhança entre os dois casos suscetíveis a analogia seja uma semelhança relevante.
O outro procedimento de auto-integração é a recorrência aos princípios gerais do Direito, ou seja, buscar em princípios ou normas não expressas, através da comparação de normas aparentemente diversas entre si, formuladas pelo interprete, aquilo a que comumente se chama o “espírito do sistema”